Programa REM: A luta conjunta do ICV e da Fepoimt pelos povos e biomas de Mato Grosso

O céu foi feito para duas coisas: para contemplar a sua beleza e para lembrar que a água vem e leva todas as coisas. Foi esse o ensinamento proferido pela mãe de Eliane Xunakalo, indígena baikiri, ao assistir ao filme Avatar.

“Aquele pássaro que voa no filme, ele está tão acostumado a ser dono do céu que achava que não tinha ninguém mais, e ele foi surpreendido. Assim somos. A todo momento, os seres encantados estão presentes e sempre vai ter alguém para mostrar que você não é superior a ninguém”, conta Eliane, que é assessora da Federação dos Povos Indígenas de Mato Grosso (Fepoimt).

Com ninguém sendo melhor que ninguém, os trabalhos se complementam. A união do diferente, feita da forma correta, traz frutos.

Como a tapioca, formada pelo calor do fogo na frigideira.

“Se você olhar a farinha, ela está lá solta. E você acha que não vai virar nada. Mas se colocar na frigideira, ela se une e se mistura e não é mais polvilho. É biju, tapioca. E a partir disso, dá para fazer muita coisa.”

A indígena da etnia baikiri faz a analogia para se referir à união entre conhecimentos tradicionais dos povos indígenas e o técnico-científico.

Se os dois são, à primeira vista, antagonistas, a experiência do Instituto Centro de Vida (ICV) junto com a entidade indígena mostra o contrário.

Nascido como fruto dos protestos contra os impactos de obras de infraestrutura no estado, o ICV sempre teve o caminho cruzado com a luta do movimentos indígena em Mato Grosso.

O projeto Cotriguaçu Sempre Verde foi uma das primeiras experiências mais diretas com atuação pelos povos indígenas da região amazônica no estado. Somou-se às articulações com o povo munduruku na bacia dos Tapajós, existentes até hoje.

Desde 2009 a instituição contribui direta e indiretamente na estruturação do SISREDD+ e da Estratégia Produzir, Conservar e Incluir (PCI).

O SISREDD+ dispões das salvaguardas a serem observadas na implementação de ações para a Redução de Emissões provenientes do Desmatamento e da Degradação Florestal REDD+, que tem como objetivo garantir que as iniciativas abordem de maneira adequada questões sensíveis na implementação do mecanismo.

O Programa de Redução das Emissões do Desmatamento e da Degradação REDD+ Early Movers de Mato Grosso (REM) é uma política pública do estado que, desde o início, teve a presença do ICV nas mesas de discussão e grupos de trabalho.

Ao mesmo tempo, a Fepoimt iniciava um processo de amadurecimento como articulação dos povos indígenas de Mato Grosso.

Em 2015, as lideranças indígenas do estado decidiram pela formalização da federação.
Julgaram, em uma conferência, ser necessária para mobilização num estado com 43 etnias diferentes, milhares de indígenas viventes no mesmo espaço de centenas de obras de infraestrutura e onde se estabeleceu o motor do agronegócio brasileiro.

“Mato Grosso é celeiro de lideranças do movimento indígena. Temos o Parque do Xingu, por exemplo”, conta Eliane. O parque é a maior área indígena do país.

“Em 2017, o governo de Mato Groso tem o esqueleto do Programa REM e com ele a definição dos seus subprogramas, entre eles o indígena”, conta Deroní Mendes, coordenadora do Programa de Direitos Socioambientais do ICV.

Junto do IPAM, a instituição fez um elo com a federação para informar a respeito do programa.

“Para que a mesma fosse incorporada nos espaços de discussão sobre a construção do programa e para ser protagonista do componente indígena no processo”, relata.

Foi quando salas vazias do escritório do ICV de Cuiabá foram cedidas para a entidade indígena e no mesmo ano em que Eliane foi convidada a ser assessora da federação.

Formada em Direito, a indígena realizou o sonho que tinha de estudar com apoio da sua comunidade.
Depois, passara a redigir estatutos para associações indígenas de todo o estado e foi dessa forma que teve o primeiro contato com a federação.

Quando a KfW (Banco de Desenvolvimento do Governo da Alemanha, financiador do programa) veio para ver a estrutura do programa REM mais definida, o ICV também recebeu o convite pela Fepoimt para apoiar diretamente na construção do subprograma.

Não foi fácil. Na primeira oficina, os membros da instituição sentiram que não tinham experiência e a expertise necessária para o papel proposto. Ademais, o ICV não é uma organização indigenista.

“No fim, entretanto, a gente já estava completamente envolvido com o processo e decidimos que era melhor termos então um papel definido”, relata Deroní, que já tinha contato com o movimento indígena anterior ao ICV, quando atuava em uma organização indígena.

Para realizar a consulta prévia, livre e informada aos 43 povos indígenas sobre o programa, juntamente com a Fepoimt, a instituição desenvolveu uma proposta técnica, elaborada a partir de estudos e dos resultados de uma consulta com mais de 80 pessoas, incluindo potenciais beneficiários do REM, ONGs, agências federais e estaduais e membros do Conselho Gestor do SISREDD+.

Primeiro, foram feitas três oficinas de multiplicadores para falar sobre o programa. Depois, em fevereiro de 2018 uma quarta abordou monitoramento e avaliação.

Foi nessa em que os indígenas decidiram um calendário de como seriam as próximas etapas dessa construção: seriam realizadas sete oficinas regionais nas terras indígenas (TIs).

“Foi um trabalho belíssimo dos quais ainda colhemos frutos disso, uma experiência de aventura”, avalia Eliane e relembra da difícil logística para as atividades: meio da chuva, caminhão e carros atolando no caminho.

Os desafios foram contornados e a experiência foi bem-sucedida, avalia Eliane, pelo fato de ICV e Fepoimt contarem com uma “equipe boa dos dois lados”.

“São muitos desafios, afinal, são 43 povos e muitos diversos”, diz ao falar sobre as oficinas. Foram mais de 1,5 mil indígenas participantes.

Em dezembro de 2018, os 43 povos indígenas de Mato Grosso concluíram a proposta do Subprograma Territórios Indígenas.

TROCA DE APRENDIZADOS

A diversidade é grande entre os povos indígenas e também entre a entidade indígena e o ICV.
Para a indígena baikiri, se fosse definir o ICV (ou como alguns parentes dizem, conta, “ICB”) em uma palavra, escolheria “troca”.

“O ICV tem ensinado a utilizar os dados, as pesquisas e ser pesquisadores na área ambiental. E ao mesmo tempo, a instituição tem aprendido conosco a lidar com as questões indígenas, com todas as especificidades que existem nessa área”, relata.

“Meio sem querer”, relata, a instituição se tornou uma referência também na questão indígena.

Complementou o propósito de luta pelo meio ambiente, sem esquecer sua missão. As organizações ambientalistas precisam do olhar para os povos indígenas, assim como as indigenistas precisam do olhar para o meio ambiente.

É nisso que acredita Eliane.

“A conservação ambiental é feita pelas pessoas. Se não tiver pessoas, não tem por que lutar pelo meio ambiente porque a natureza mesma se protege da gente. E o ICV vem dizer que é necessário trabalhar com os povos das florestas, dos biomas, que o conhecimento não científico é complementar ao técnico”, diz.

A instituição também apoiou com a experiência de anos na agricultura familiar. “Também somos agricultores”, exemplifica a indígena.

Há muito em comum, mas são as diferenças e os diálogos constantes que tornam a luta conjunta forte.

“Isso tudo vem como uma soma. Ao longo dos anos, começamos a fazer um portfólio de experiências com o ICV e outras organizações que foram aparecendo nesses últimos anos”, afirma.

Atualmente, ICV e Fepoimt estão no processo de implementação do subprograma.

Eliane considera-se uma construtora de alicerces. Considera o seu trabalho e o de tantos outros como formação de bases sólidas indispensáveis para um futuro digno.

O trabalho pela conquista de direitos dos povos indígenas ou do meio ambiente é como uma construção de uma rede. Primeiro, é necessário preciso plantar o algodão. Colher, fiar, tecer.

“Até chegar no final, é preciso concentração e imaginar como a rede vai ficar”, afirma a indígena.

Em tempos desafiadores para atuação na área socioambiental, a imaginação da rede pronta e o lembrete do céu de que a chuva leva tudo embora são motivação para seguir.